Alçado rei, em Alcobaça, corria o ano de 1367, D. Fernando, o «formoso» e «inconstante» rei de quem Herculano dizia «tanto degenerava de seus antepassados», não esperou muito, desde que se alcandorou ao trono, para se envolver numa inconsequente e injustificada guerra com Castela, que durou até 1371, exaurindo de gentes e cabedais os domínios régios, a troco, somente, de inúteis «cavalgadas e razias de um e outro lado da fronteira».
A paz, alcançada por mediação da Igreja, em Março deste último ano, na altura em que os vindos de Leste, há muito tinham terminado com o real «ex-vo-lo-vai, ex-vo-lo-vem,/ de Lisboa para Santarém» e cercavam a capital do reino, obrigava a que Fernando casasse com Leonor, filha de Henrique II de Castela.
A boda, todavia, não se chegou a realizar. A nubente, menor, estava obrigada a sete meses de detença até à consumação do acto. Neste entretanto, e face à irrequietude juvenil do «formoso», alguns dos cortesãos que lhe eram mais próximos desapoquentavam-no: «juras de foder não eram para crer».
Vai daí, crendo-se livre do compromisso, Fernando, que seria «amador de mulheres e achegador a elas», perdeu-se de amores por Leonor Teles, sobrinha do «Conde Velho», de Barcelos, João Afonso Teles de Meneses, moça casada e mãe de filho, «bem louçã, de formosas feições e graça, bom corpo e dulcidão de fala».
A ilicitude da relação, contudo, não agradou aos «povos do reino», preocupados com a origem de Leonor na «grande nobreza luso-castelhana» e com os perigos que daí advinham para o enfraquecimento do poder régio e para o espoletar de «uma segunda guerra com Castela».
As ajuntanças «em magotes, como é usança» contra «os grandes que consentiam aqueles amores ilícitos» começaram em Lisboa, mas rapidamente irradiaram para outras urbes e povoados do Sul, obrigando Fernando e Leonor Teles a cavalgarem até ao Mosteiro de Leça do Balio, onde casaram, dissoluto que fora, por suposta consanguinidade, o primeiro casamento da arrebatadora manceba.
Serenada, ao que parece, a fidalguia lusa, e arrasado a fio de espada o atrevimento da plebe, havia que contar, todavia, com a vingança de Henrique de Castela, que, à desfeita do casamento de Fernando com a Teles, somava ainda o desagrado pela guarida e apoio concedidos aos desavindos seus que, do lado de cá da raia, se organizavam em violentas cavalgadas pela Galiza adentro.
Desta feita, é ele, Henrique, também senhor de Trastâmara, que inicia a segunda guerra no ocidente peninsular, arrimando, sem disparar uma seta, até Lisboa, que cercou, depois de uma passagem pacífica pelas cerradas portas de Santarém, onde Fernando se alquebrava nos anteparos de Leonor.
Enquanto isso, e com as poucas gentes do reino disponíveis a caminho de ou sitiadas em Lisboa, «o adiantado de Galiza, Pedro Rodriguez Sarmento», desenfreou elevado número de peões e cavaleiros pelo Entre Douro e Minho abaixo, «prendendo, matando e saqueando (…) até às imediações de Barcelos, sem achar quem lhe atalhasse o passo.» E assim praticamente continuaria se, finalmente, não se lhe atravessasse ao caminho, força à pressa arregimentada pelo conde de Seia. «Foi terrível o conflito; mas, por fim, desbaratados os portugueses», mais de cem foram feitos prisioneiros, entre eles «o alcaide-mor do Castelo de Faria, Nuno Gonçalves.»
Com o castelo à guarda de seu filho, Gonçalo Nunes, o ardiloso alcaide, na esperança de manter o bastião régio fora das mãos do inimigo, «pediu ao adiantado que o mandasse conduzir ao pé dos muros do castelo, porque ele, com suas exortações, faria com que o filho o entregasse, sem derramamento de sangue.»
Rodeado «de besteiros e de homens de armas», e seguido de perto pelo «grosso da hoste», onde pontificava o «adiantado de Galiza», Nuno Gonçalves foi-se acercando da barbacã do Castelo, até à altura em que, no meio de um «silêncio profundo, um arauto saiu do meio da gente da vanguarda inimiga e» clamou:
« – Moço alcaide, moço alcaide! (…) teu pai, cativo do mui nobre Pedro Rodriguez Sarmento, adiantado de Galiza pelo mui excelente e temido dom Henrique de Castela, deseja falar contigo, de fora do teu castelo.»
Acercando-se da barbacã, Gonçalo Nunes «disse ao arauto: – A Virgem proteja meu pai. Dizei-lhe que eu o espero.» Volvidos poucos instantes, e rodeado de castelhanos, o «velho guerreiro» aproximou-se dizendo:
« – Sabes tu, Gonçalo Nunes, de quem é esse castelo? (…)
– É – respondeu Gonçalo Nunes – de nosso rei e senhor dom Fernando de Portugal, a quem por ele fizeste preito e menagem.
— Sabes tu, Gonçalo Nunes, que o dever de um alcaide é de nunca entregar, por nenhum caso, o seu castelo a inimigos, embora fique enterrado debaixo das ruínas dele?
— Sei, ó meu pai! — prosseguiu Gonçalo Nunes em voz baixa, para não ser ouvido dos castelhanos, que começavam a murmurar. — Mas não vês que a tua morte é certa, se os inimigos percebem que me aconselhaste a resistência?
Nuno Gonçalves, como se não tivera ouvido as reflexões do filho, clamou então:
— Pois se o sabes, cumpre o teu dever, alcaide do Castelo de Faria! Maldito por mim, sepultado sejas tu no inferno, como Judas o traidor, na hora em que os que me cercam entrarem nesse castelo, sem tropeçarem no teu cadáver.
— Morra! — gritou o almocadén castelhano. — Morra o que nos atraiçoou.
E Nuno Gonçalves caiu no chão, atravessado de muitas espadas e lanças.
— Defende-te, alcaide! — foram as últimas palavras que ele murmurou.
Os castelhanos acometeram o castelo; no primeiro dia de combate o terreiro da barbacã ficou alastrado de cadáveres tisnados e de colmos e ramos reduzidos a cinzas. (…)
Mas Gonçalo Nunes lembrava-se da maldição de seu pai. Lembrava-se de que o vira moribundo no meio dos seus matadores, e ouvia a todos os momentos o último grito do bom Nuno Gonçalves: “Defende-te, alcaide!”
O orgulhoso Sarmento viu a sua soberba abatida diante dos torvos muros do Castelo de Faria. O moço alcaide defendia-se como um leão, e o exército castelhano foi constrangido a levantar o cerco.»
(Citações e consultas de texto obtidas a partir de originais escritos por Fernão Lopes, Alexandre Herculano e António Borges Coelho).